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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O QUE A REDE EMBALOU

Xilogravura Djanira da Motta e Silva

Um pano bem esticado
Dois punhos, um armador
Deitado naquela rede
Sozinho ou com um amor
Agarradinho encaixado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

A chuva pingando fino
O vento frio soprou
A terra molhada avisa
Que o legume brotou
E do tempo admirado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Foi uma invenção dos índios
Cama de agricultor
Símbolo de uma cultura
De um povo sofredor
Que dormindo pendurado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Um bebê sendo embalado
Mosqueteiro, ventilador
Dois cabos em cada ponta
Que a vassoura emprestou
E num molambo agarrado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

E aquele fundo sonoro
Do rangido do armador
Vai trazendo logo o sono
Melhor que qualquer cantor
E os olhos quase fechado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Brincadeira de criança
Que o menino imaginou
Ali um perfeito cavalo
E quem nunca cavalgou?
Uma perna de cada lado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Uma parede alvinha
Que o pé já carimbou
Para ganhar o impulso
Quase levantando voo
E o teto quase triscado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Se sair perde o lugar
Foi regra do ditador
Enfurnado o dia todo
Sem brisa, só um calor
E mesmo todo suado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Rede branca enfeitada
Que D. Isaura bordou
Ponto de cruz e crochê
Desenhado uma flor
E com os punhos trocados
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Deitar de dois incomoda
Imprensa, dói, um horror
Agora se for o xodó
Que na beirinha sentou
Diz que está é folgado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Enche o chão de almofada
A rede logo baixou
Mais cuidado e precaução
A corrente colocou
E no chão quase encostado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Depois de uma refeição
Esmoreceu, cochilou
O ronco logo anuncia
O corpo já relaxou
E num sono ferroado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

Depois de umas cachaças
Quando já se embriagou
De pé já não conseguia
Deitado, o mundo rodou
E quase já desmaiado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou

A  vida chega ao fim
Com um sopro de pavor
Empacotado na rede
Despedida, choro e dor
E nela vai enterrado
Vai naquele balançado
Que a rede embalou.


sábado, 21 de fevereiro de 2015

Três genros, Uma sogra e Um bilhete de loteria


Eu nunca aceitei encomenda
Pra escrever um cordel,
Velório ou batizado
Noivo entregando anel,
Só mesmo por um bom mote
Ou inspiração do céu.

Mas pela primeira vez
Vou abrir uma exceção,
Vou escrever esses versos
A pedido dum patrão,
Afinal quem não faria
Um cordel por um milhão?

Mais detalhes dessa estória
Agora vou lhe contar,
Só não saia espalhando
Contando em beira de bar,
Foi um presente pra sogra
Que Teles quis homenagear.

Estava deitado em casa
E recebeu uma ligação,
Do seu cunhado Marquim
Chamando pr’uma reunião,
Na casa da sogra Neuma
“É sério, não falte não”.

Chamou a sua senhora
Arrumou logo os meninos,
Mas seu pensamento era
“Os anjos tocaram o sino,
Foi talvez uma doença
Que veio mudar o destino”.

No caminho para a sogra
Viajou no pensamento,
Do pinico à bomba atômica
Foi do 0 a 100%
Da angustia à alegria
Do alívio ao tormento.

Sua senhora do lado
Não fazia nem um gesto,
“O que foi que sucedeu?
Será que foi um sequestro?
Bem que antonte eu tive
Um sonho meio funesto”.

Quando chegou logo viram
Uma cena impressionante
D. Neuma pinotando
Vestida em um colante,
Só gritava “Eu vou comprar,
Dois quilos de diamante”.

Teles então concluiu
“D. Neuma tá surtada”,
Os dois genros lhe chamaram
 Pruma sala isolada,
E anunciaram um fato:
“A sogra foi premiada”.

“Nossa sogrinha ganhou
36 e oitocentos
De milhões de reais
Livre de imposto, isento
Na loteria da mega
Nesse exato momento”.

Teles pegou o bilhete
Olhou sem acreditar
Quatro minutos de amor
Olhando Neuminha dançar,
“Eu sabia que um dia
Tudo ia compensar”.

Passando a euforia
Cada um já foi pensando,
O que nós vamos fazer?
Qual seria o nosso plano?
Pra dividir o dinheiro
Sem parecer desumano.

Juliano, eu não falei
Era o genro preferido
Ele foi logo dizendo
Que o dinheiro repartido
Daria 12 pra cada
1/3 bem dividido.

“Mas e os 800 mil?”
Perguntou logo Marquim
“D. Neuma é sem noção,
Com tanto dinheiro assim
Vai torrar só com besteira
Com calçado e michelim”.

Teles disse “É melhor,
Comprar de papel higiênico,
Limpo essa grande cagada
Pago o financiamento
E a minha fabrica Pimpo
Ganha mais investimento”.

Juliano, caba esperto
Claro que não concordou,
“Melhor comprar uns tecidos
Algo que é mais durador,
Ou então compre uns cavalos
Sou vaqueiro vencedor”.

“Nem pensar!” disse Marquim
“Com a sobra do dinheiro:
Compro um carro importado,
Viajo pro estrangeiro,
Ainda trago de presente,
Uns paninhos de banheiro”.

Enquanto os abestados
Tavam tudo planejando,
D. Neuma atrás da porta
Estava só escutando,
Guardou o bilhete na bolsa
Devagar foi escapando.

Pegou o marido na loja
E tocou pro aeroporto,
“Vamos embora daqui
Viver com luxo e conforto,
Pois esses genros safados
Não quero ver mais nem morto”.

E assim vou terminando
Esses versos de cordel,
Pois um milhão que é bom
Só de rolo de papel,
Não vou ficar esperando
Cair dinheiro do céu.

Agora eu vou é atrás
De D. Neuma estribada,
Dizem que foi pra Zeuropa
Comprar bolsa importada,
Beber só Veuve Clicquot
Da aurora à madrugada.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

MAIS SABIDO QUE ELEITOR É PREFEITO DE INTERIOR


Quem já viu uma eleição
Dessas de interior,
Que a cidade se divide
Cada prefeito uma cor,
Entenderá essa história
Que em Apirol se passou.

Quando o partido escolheu
Que eu seria o candidato,
Deu um frizim na barriga
Tentei desfazer o trato,
Mas quando vi, já era
No cartaz o meu retrato.

Nunca ganhei um sorteio
Nem arremate em leilão,
Nunca ninguém me escolheu
Nem pra ser par de São João,
Mas será que era a vez,
Logo uma eleição?

Trabalhar e passar ordem
Isso até que sei fazer,
Mas voto de apiroense
Não se tem por merecer,
Empenhei foi a fazenda
Para poder concorrer.

A campanha aconteceu
Feito guerra em Israel,
Era surra de vassoura
Ovo podre no chapéu,
E ainda os mais valentes
Mandava bala pro céu.

Eram as comadres intrigadas
Cada uma d'um partido,
Um bêbo gritava meu nome
Pro outro, um doido varrido,
Até os padres brigaram
Deixando os fiéis perdidos.

Em Apirol nunca vi
Eleição mais disputada,
Era 50 à 50
A pesquisa anunciada,
Só ressuscitando defunto
Pra desempatar a cilada.

Se somasse os quilômetros
Os distritos que visitei,
Com as xícaras de café
E os abraços que eu dei,
Ia de Apirol à lua
Pelo menos umas três vezes.

E nas últimas semanas
O negócio apertou,
Era comício e dinheiro
Era presente e favor,
Só num prometi os fundos
Por que a mulher num deixou.

E então chegou o dia
O frio na barriga voltou,
Prometi a Nossa Senhora
Decorar bem lindo o andor,
E foi quando uma estrela
Bem alto no céu brilhou.

E aquele friozinho
Virou uma dor de barriga,
Me caguei o dia todo
O rádio liga e desliga,
E então anunciaram
O vencedor da partida.

“Meu Senhor muito obrigado
Por vencer essa disputa,
me sentindo um galo
Quando termina uma luta,
Meio fraco, escangotado
Mas de alma lavada e enxuta”.

Agora vou lhe contar
A 2a. parte da estória,
Recontaram mais de uma vez
Os votos da minha vitória
Pois a diferença foi de 1,
Ponto que trouxe a glória.

E cada um que chegava
Para me cumprimentar,
Dizia “ô seu prefeito
Não esqueça de mim lá,
Pois foi graças ao meu voto
Que você vai governar”.

Sr. Zeba chegou dizendo
“Eu vim lá de Juazeiro,
A topic quebrou na rodagem
Passei o maior aperreio
E quando cheguei na sessão
Meu voto foi o derradeiro”.

Chica de Rossi com 90
Votar já não era obrigada,
Com catarata nos olhos
De hemorroida operada,
Deu também o voto minerva
Aquele que eu precisava.

Os meninos de 16
Feito Pedro de Francimar,
Diz que ele que me elegeu
Pois não ia nem votar,
Só tirou o documento
Que era pr’eu poder ganhar.

Até defunto alegou
Que morreu pra eu vencer
Apoiava outro partido
Mas veio a falecer,
A dois dias da eleição
Vindo me favorecer.

Se cada um que chegou
Tivesse votado em mim,
Hoje eu era Deputado
E andava num jatim,
Tava morando em Brasília
E não no meio do capim.

Mas só sei que cada voto
Teve um grande valor
Agora tenho que honrar
O banco, o meu fiador
Pois é devendo dinheiro
Que gastei com eleitor.

Eles dizem que votaram
Por amor e por bondade
Mas destar se eu num tivesse
Vendido a propriedade
E derramado o dinheiro
Pelas ruas da cidade.

Pois vou logo avisando
Que ninguém me elegeu,
Eu comprei foi cada um
Dos votos que apareceu,
Besta foi o outro lado
Que gastou menos que eu.

Só quero esperar e ver
Se valeu a pena aplicar,
O dinheiro que gastei
Quero ver quadruplicar,
Quero agora três fazendas
E mil garrotes a pastar.

Agora que tomei gosto
Quero a reeleição,
Com tanto dinheiro assim
Compro até a oposição,
Pois outro aperreio desses
Tai que passo mais não.


domingo, 1 de fevereiro de 2015

Calor da Boba Serena


Calor da Boba Serena
Nessa vida que vivi
Nunca dei um passamento,
Nem por fome, nem por amor,
Nem coisa do pensamento,
Mas ontem caí durim
Bem no mei do calçamento.

Tava atravessando a rua
Quando a vista escureceu,
Era mei-dia em ponto
E o céu virou um breu,
Faltou o sangue na veia
E a perna esmoreceu.

Quando tornei do desmaio
Via a cara de um dôtor,
O povo me abanando
Com uma cara de pavor,
E uma fulana gritando
- Isso foi bem o calor.

Me montaram numa moto
Eu ainda baqueado,
Me agarrei no motorista
Que falou  agoniado
“O dôtor já foi pro posto,
E você vai internado”.

Uma ruma de exame
O dôtor falou pra mim
“Seu problema é o calor
Já atendi quatro assim”
Passou logo o tratamento,
Vou fazer bem direitim.

Todo dia que acordo
Tomo dois côco gelado
Um pedaço de melancia
Pr’eu ficar bem hidratado
Depois vou pro tanque d’água
E passo uma hora sentado.

Hora de escovar os dentes
Pego uma pasta bem ardida,
Mastigo uma folha de menta
Pedra de gelo partida,
No final um copo d’água
Que ficou ali dormida.

Me besunto uma pomada
Feito cordão e cerol,
Um chapéu de abas largas
E os óculos do tersol,
Um guarda-chuva aberto
Mode proteger do sol.

As mangas de motoqueiro
Também não podem faltar,
Uma calça de linho branca
Que é pros ovos não suar,
O calçado é uma alpercata
Mode os pés não esquentar.

Quando chego ao serviço
Molho logo a moleira,
Os pés da nuca e os pulsos
Pra melhorar a canseira,
E a cada hora que passa
Repito a brincadeira.

A boia que já era fria
Agora ficou gelada,
Também o comer é pouco,
Nada de coisa pesada,
E depois pra encerrar
Dois litros de limonada.

Chegando o final do dia
Vai vindo uma melhorinha,
O sol vai então cansando
E deixa cair à tardinha,
Mas o Aracati se perdeu
Pelas cidades vizinhas.
  
Quando eu volto pra casa
A comadre quer amor,
Mas mesmo todo molhado
De frente ao ventilador,
Não tem cabra que aguente
Dá uma nesse calor.

Agora o que dá pena
É de ver os animais,
Urubu se abanando
O gado nem baba mais,
Até cobra cascavel
Nem prum bote é capaz.

Coloquei um copim d’água
Deixei a gaiola aberta,
Pois num é que uma rolinha
Chegou faceira, esperta,
Desistiu da liberdade
E pediu prisão perpétua.

Também sofre os dôtor
Que tem que andar de terno,
Não sei o que nós fizemos
Pra ter esse sol eterno,
Pois nem o Diabo aguenta
Esse calor no inferno.

Fiz promessa pra São Pedro
Mas não veio resultado,
Nenhuma nuvem no céu
Nenhuma gota no roçado,
Se continuar assim
Morreremos estorricado.

Pra São Paulo não vou mais,
A água lá acabou,
Será que as torneiras do céu
Deu um pau? Desmantelou?
Ou será que foi castigo
Birra de nosso Senhor?
  
Enquanto a chuva não vem
Enquanto o sol não apeia,
Eu vou dando o meu jeito
Fazendo o que me aconselha,
Rezando prum dia cair
Granizo nas minhas telhas.

Pode ser de um espirro
Ou de borboleta voando,
Pode ser de um assobio
Ou d’uma bandeira abanando,
E nem mesmo de um peido
Um vento tô dispensando.